CONTO: Legião, de Edson Rossatto

A noite estava perfeita para o ritual. Tudo já estava preparado: as velas vermelhas ao redor do túmulo, o pentagrama invertido inscrito na tampa de concreto, os cálices de prata posicionados de cada lado da sepultura. Ela olhou a cova e deu-se por satisfeita. Faltavam poucos minutos para a meia—noite. Já era hora de começar. Pegou o saco de estopa que estava no chão e desamarrou a boca. O gato ainda estava vivo, apesar das pancadas que ela tinha desferido contra ele. Quase não miava. Suas patas estavam amarradas. A garota segurou-o pela cabeça e puxou uma pequena adaga de sua bolsa. Sem hesitar, arrancou os olhos do pequeno felino negro, um após o outro. Os miados se tornaram estridentes. Quando já estava de posse dos olhos, esfaqueou o animal diversas vezes e jogou o seu corpo a alguns metros.


Seus olhos estavam radiantes e seu sorriso não podia ser contido. Depositou os globos oculares um em cada taça de prata. A cerimônia precisava continuar. Abriu os botões de sua camisa e tirou-a. Seus seios eram expostos ao luar. Baixou a saia, tirou sua calcinha e logo depois seus sapatos. Estava totalmente nua, conforme o rito necessitava. Subiu no túmulo e se posicionou em cima do pentagrama com os braços e cabeça levantados.

— Ó príncipe da escuridão, senhor das moscas e imperador dos infernos! Legião é o teu nome porque muitos estão contigo. Conceda à tua súdita fiel uma audiência. Estou ansiosa pela tua presença. Apareça, meu príncipe! Apareça!

Enquanto proferia aquelas palavras, acariciava seus seios e suas partes íntimas.

— Ó senhor de todo o mal e ciente de todas as respostas, mostra-te para tua serva — disse ela enquanto se ajoelhava.

Ouviu um barulho. Olhou para trás e viu a escuridão. Do meio dela o vulto de um homem apareceu. Ela assustou-se ao mesmo tempo em que se fascinou. Sentia medo e paixão.

Era um homem alto, branco, com olhos brilhantes, cabelos negros e sorriso puro. Vestia um capote negro até os pés. Quanto mais ele se aproximava, mais seu coração palpitava. Parou em sua frente.

— Quem és tu? — ela perguntou

Com um sorriso franco e imaculado, proferiu em um tom calmo:

— Chamaste o senhor das trevas e fazes perguntas tolas? Utiliza bem o teu tempo. O que queres?

Ela sorriu e se prostrou a seus pés.

— Meu senhor, — beijou os pés dele — tu conheces todas as verdades do universo. Tua serva quer participar de tua sabedoria.

— Queres saber as verdades do mundo? As mesmas verdades que conheci através dos milênios e das eras?

— Sim, meu príncipe! É isso mesmo!

Ele sorriu.

— Tens conhecimento do preço?

— Minha alma será tua quando eu me for! Serei tua escrava por toda a eternidade. É um preço baixo para quem terá a sabedoria plena por muito tempo. Poderei ser muito rica, senhora das muitas verdades!

Ele afastou-se.

— Pode ser feito! Levanta-te!

Ela levantou-se. Sorrindo, ele elevou a mão.

— Toda a minha sabedoria será duplicada e passada para o teu cérebro... — enquanto dizia aquelas palavras, uma névoa densa e brilhante brotava do chão, infestando todo o cemitério. O corpo da garota passou a ter espasmos e convulsões — ..., cada parte dele será ocupada pelos conhecimentos da humanidade e os que ela ainda não desvendou!

A névoa penetrava em seu cérebro pelas narinas, ouvidos e boca. A convulsão e os espasmos continuaram por mais alguns minutos até que seu corpo caiu e ali permaneceu. O homem bonito e de sorriso franco a observou.

— Seu pedido foi atendido. Milênios de conhecimento povoam tua mente. Devo lembrar-te de que o cérebro humano não foi projetado para suportar e entender tantas informações.

O corpo nu da garota mexia-se vagarosamente ao lado da sepultura.

— Isso causa um pequeno problema!

O homem deu as costas e caminhou em direção à escuridão. No dia seguinte foi encontrada e levada ao hospital. As feridas do corpo ocasionadas pela queda foram curadas. Quando acordou, dizia palavras desconexas, gritava e se debatia, além de agredir as enfermeiras. Após alguns dias foi encaminhada à área psiquiátrica do hospital, onde permanece até hoje sem conseguir viver novamente em meio à sociedade.