CONTO: "Sra. Cury", de Edson Rossatto

Ela se aproximou do espelho ovalado e encarou o reflexo cansado de sua face enrugada. Piscava vagarosamente as pálpebras pesadas, mostrando, vez ou outra, os globos oculares arroseados. Levou suas mãos até o rosto e o esfregou, baixando—as lentamente. Em seguida, atentou-se para a gaveta da penteadeira, fixando ali o seu olhar. Levou suas mãos até ela e puxou a alça, tirando, de dentro, uma caixa pequena. Abriu-a. Olhou por certo tempo o conteúdo e permaneceu imóvel, ostentando um leve sorriso iniciado pelo canto esquerdo de seus lábios. Imagens lhe vinham à mente. Quando seu transe passou, tirou algo de dentro da caixa e a guardou novamente.

— Vó!?


A senhora virou-se vagarosamente e, ao longo dos seus 87 anos, deu um leve sorriso. A moça se aproximou e a abraçou.

— O tio chegou com a tia e os primos. Ele quer dar um abraço na senhora.

Ela assentiu com a cabeça. A moça sorriu, tomou-a pelo braço e a conduziu com cuidado para a sala, onde as visitas a esperavam. O primeiro a abraça-la foi o mencionado tio, seu filho. Foi um abraço forte, sincero e demorado. Palavras sentimentais foram ditas por ocasião do momento. A nora e os netos da distinta senhora não esperaram muito e foram os próximos a abraça-la. Era uma anciã muito querida. Sua presença de espírito cativava todos, familiares, amigos e também os apenas conhecidos.

Ela e o esposo, 64 anos atrás, começaram a construir uma família e o amor que compartilhavam gerou, logo no primeiro ano, sua primogênita.

Trabalhando como tipógrafo, o marido conseguiu garantir o sustento da esposa e da filha nos três primeiros anos da menina. Entretanto, a família foi crescendo. Nasceu o primeiro filho homem e, logo no ano seguinte, outra menina.

Com três crianças, ficou impossível que o casal pudesse manter-se junto durante o período noturno. O consorte deixou a mulher cuidando dos filhos e empregou-se como guarda noturno em uma fábrica. Deixava o emprego na gráfica, ao entardecer, e dirigia-se apressadamente para a indústria. Mal dava tempo para comer. Quando em casa chegava, a esposa, na maioria das vezes, ao fazer os filhos dormirem, também adormecia. Ao acordar, raramente encontrava o marido, que já havia saído para a gráfica. Contudo, no criado mudo, constantemente deparava-se com uma flor feita de dobradura de papel. Era a forma de ele poder demonstrar seu amor, mesmo estando longe. Um sorriso sempre era inevitável. Assim foi por muitos anos.

Cuidar de três filhos não era uma tarefa muito fácil e, quando chegou o quarto, ficou ainda mais difícil. Todavia, o casal permanecia unido em todas as dificuldades.

Chegou a idade escolar do primeiro, depois do segundo, logo mais do terceiro e, finalmente, do quarto filho. Mais alguns anos se passaram. O primeiro namorado da primogênita. O nojo do quarto filho ao ver a irmã sendo beijada na boca. A demissão do patriarca da gráfica onde trabalhava. O rasgo na perna da filha mais nova com o pião do irmão.

A mãe começou a costurar para fora e as suas meninas a ajudavam, enquanto os meninos, durante o dia, aprendiam com o pai o oficio de tipógrafo com instrumentos gráficos improvisados.

O tempo passava. A formatura da primogênita e sua entrada na faculdade. O primeiro emprego do segundo filho, como aprendiz de tipógrafo em uma gráfica de porte pequeno. Arte ensinada pelo pai.

Assim que seus netos a abraçaram e a soltaram, ela olhou para seu filho com a família e visualizou aquele pequeno aprendiz de tipógrafo, no meio do quintal, aprendendo com o pai o ofício que, um dia, garantir-lhe-ia o sustento confortável de sua futura família. Sorriu.

— Vamos, mãe! — ele a tomou pelo braço — Temos que ir para a outra sala. Tem mais pessoas esperando a senhora.

Acompanhando a matriarca em seu lento ritmo, os presentes dirigiram-se para o outro cômodo. Lá chegando, a velhinha pôde constatar a presença de seus outros filhos com suas famílias. A primogênita estava sempre perto. Morava não muito longe da mãe. Sua filha era a neta que informara da chegada do tio.

Mais adiante estava a filha mais nova, agora uma senhora. Estranhamente a anciã se lembrou do episódio do pião e não pôde conter um breve sorriso. Por fim, o outro filho, um senhor de terno e barba, e a esposa. Este ainda não possuía filhos. Talvez nunca os tivesse por falta de tempo.

A velha senhora olhava seus descendentes. Várias gerações de pessoas de bem, iniciadas pela união de dois apaixonados jovens havia dezenas de anos. Ela só conseguia enxergar seus pequenos pedaços de gente, como costumava chamar. Sensivelmente, seus olhos verteram pingos de choro. Todos, compadecidos, aproximaram-se devagar e a tocaram da forma que puderam. Ela enxugou as lágrimas e, sob os olhos dos presentes, aproximou-se do caixão. Contemplava a face tranquila do seu companheiro de muitas décadas. Ele havia descansado, depois de tanto padecer naquela cama fria de hospital. Havia feito a sua parte neste mundo renovável, onde uns têm de ir para outros chegarem.

A velhinha debruçou-se lentamente sob o corpo inerte do esposo e deixou escapar mais algumas lágrimas. Os presentes não se continham de emoção. A senhora se levantou, olhou para as mãos do falecido, postas sob o coração e levou as suas até elas.

Depois de muito velar o marido, a senhora se recolheu lentamente para a sala de estar, ajudada pelo filho de barba. Suas pernas já não aguentavam sustentar aquele frágil corpo arqueado.

Passados alguns instantes, aproximando-se do falecido, a filha mais velha notou algo por entre os dedos do pai e os separou. Em meio às mãos enrugadas do velho finado, sem entender, contemplava uma amarelada dobradura de papel em forma de flor.