CONTO: "Esquecidos", de Edson Rossatto

A sala era simples, escura, sem janelas ou qualquer outro tipo de particularidade. Móveis e objetos haviam sido dispensados, com exceção de uma cadeira. Naquele silêncio tumular, podiam-se ouvir os lentos batimentos cardíacos daquele homem. Mesmo com a presença da cadeira, seu corpo nu permanecia estendido no chão gelado e revelava diversos hematomas e cortes, com sujeira sanguínea por todos eles. Uma grande poça era formada do escorrer de sua urina amarelada, cujo odor era demasiadamente forte. A mulher que o acompanhava estava sentada no assoalho e emprestava suas pernas para o homem desacordado, como se fossem travesseiros. Ela limpava seus ferimentos com muita calma, apesar de seus olhos estarem lacrimejantes.

— Não morra...! — murmurava.


Mirava sua face e notava as profundas olheiras, logo abaixo de um considerável talho sangrante no supercílio esquerdo. Os lábios do rapaz contavam com diversos cortes avermelhados e dignos de pontos cirúrgicos, bem como o rasgo no lóbulo da sua orelha direita. Ela observava as manchas circulares em seu tórax e não precisou de muito tempo para concluir que eram queimaduras de cigarros. Os danos aos órgãos internos do homem não eram possíveis de serem precisados. Inegavelmente o rapaz necessitava de mais cuidados dos que lhe eram oferecidos ali naquele local frio. Sem os acompanhamentos médicos demandados, sua morte seria inevitável.

Entretanto, a garota sentiu suaves movimentos oriundos da cabeça do enfermo, tornando-se cada vez mais evidentes. Aos poucos, ele foi despertando. Seus olhos foram se abrindo com muito esforço e, antes mesmo de abri-los completamente, sentiu as fortes dores que tomavam o seu corpo. Gemeu. A primeira imagem que viu foi a face branca e sorridente da garota, ainda distorcida. No momento em que sua consciência retornou e ele se deu conta de onde realmente estava, um estrondo veio da porta assim que ela se abriu. Três homens fardados entraram na sala, dois na frente, seguidos pelo terceiro. A farda deste último era diferente da dos demais, fato que denotava sua patente superior. A moça ajudou o doente a se deitar no chão, levantou-se e se dirigiu ao superior.

— Eu tratei dele e não o deixei falecer, conforme o senhor mandou.

O homem para quem ela dirigiu as palavras tirou os óculos, o quepe e sorriu em tom sarcástico.

— Você fez o seu trabalho. Agora deixe-nos fazer o nosso. Saia.

O tom imperativo com que ele proferiu aquelas frases não permitiu que ela pensasse em outra coisa que não fosse obedecê-lo imediatamente. Ao se aproximar do ferido, o homem de farda diferente agachou-se e segurou o seu queixo. Virou o rosto dele de um lado para o outro com certa rudeza.

— É, parece que você não está morto...

Soltou uma leve gargalhada e se ergueu. O ferido respirava com dificuldades e os seus olhos denotavam muito medo daquele oficial. Eles já eram velhos conhecidos. Os outros dois permaneceram próximos à porta.

— Seu nome é Roberto, não é?

Ele nada respondeu. Sua respiração estava forte. O oficial perguntou novamente e recebeu silêncio como resposta.

— Você pode ficar calado e não responder, mas um de seus companheiros — ele disse esta palavra em tom zombeteiro — entregou você. E agora? O que me diz?

Roberto permaneceu calado, só fez algum barulho com a boca ao gritar, sentindo a forte pressão da bota do oficial contra a sua mão.

— Eu chamava você de Pedro e esse era só o seu pseudônimo, não era?

Sem poder mexer a mão, de dor, ele se encolheu e gemeu.

— Podemos acabar com esse seu sofrimento bem rápido, Roberto. Eu só quero o nome dos outros integrantes do seu grupo da ALN. Vamos, fale...! Não pudemos perguntar isso ao Paulo que morreu logo depois de tê-lo entregado... — sorriu — Droga! Seria bem fácil...

O oficial entendeu que somente palavras não fariam com que o prisioneiro confessasse, então resolveu partir para uma terapia, como eles chamavam, que funcionasse, mas antes deliberou provocar o rapaz.

— O que você quer proteger com o seu silêncio, hein? Você está aqui há alguns dias e ignora o que aconteceu há poucas horas.

O prisioneiro se interessou e o oficial percebeu.

— O Fleury pegou o Marighella.

Roberto arregalou os olhos.

— É isso mesmo que você ouviu. O seu chefe, Marighella, Líder da — com desdém — Aliança Libertadora Nacional, foi fuzilado na rua a mando do delegado Fleury.

Lágrimas escorriam e se mesclavam com o sangue da sobrancelha de Roberto. Tudo pelo que eles lutaram estava se desmoronando. O regime imposto pelos militares mediante o AI-1 se fortalecia enquanto os membros da resistência eram fuzilados pelas ruas do país ou torturados até dizerem verdades que não condiziam com a realidade.

— Mas chega de blábláblá! A enfermeira garantiu a sua vida para que pudéssemos conversar com você novamente, mas já vi que você não vai falar aqui. Vamos ver se um tempinho de choques fará você dizer o que queremos ouvir.

O oficial acenou com a cabeça e os outros dois fardados deram um passo à frente.

— Levem este sujeito para a cadeira do dragão...

Mal terminou de falar, seus subordinados tomaram o homem com brutalidade e o arrastaram para fora da sala.

— ...e certifiquem-se de que a cadeira esteja bem molhada. Quero respostas já!

Até o dia amanhecer, Roberto sentiu correntes elétricas percorrerem seu corpo e sua única manifestação oral foram os gritos de sofrimento que deixava escapar. A dor imensa fazia-o perder o controle dos músculos. Saliva, urina e fezes escorriam cada qual de sua origem, fazendo o homem perder a dignidade que ainda lhe restava. Já debilitado e quase sem vida, os soldados lhe aplicaram injeções de éter nos pés. A dor era inenarrável e os gritos ficaram intensos, tornando-se urros quase animais. Contudo não entregou os verdadeiros nomes de seus camaradas de resistência. Infelizmente, como tantos outros que passaram pelos porões do DOPS, ele não sobreviveu. Seu desaparecimento intriga os familiares nas últimas décadas.